sexta-feira, 10 de junho de 2011

Rumo a uma Marcha Nacional da Liberdade

Rumo a uma Marcha Nacional da Liberdade

Somos todos indignados? Debate nesta quinta-feira procura articular coletivos jovens que propõem novas pautas emancipatórias – e não querem ser tratados com gás-pimenta e tasers

Por Antonio Martins


Marcha Nacional da Liberdade: 18/6 (Sábado), em dezenas de cidades brasileiras:Localize e participe

Debate: Violência policial na periferia e armamento “menos letal” em manifestações


Quinta-feira (9/6), às 19h.
Veja vídeos abaixo e o texto na sequência

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“Violência policial na periferia e ‘armamento menos letal’ em manifestações”. Com um debate sobre este tema [veja dados acima], um conjunto de coletivos jovens estabelecidos em São Paulo – mas com laços nacionais – lançou nesta quinta-feira (9/6), um esforço que pode contribuir para propagar no Brasil uma nova cultura política. Convencidos de que é preciso superar o capitalismo, os organizadores não cabem, contudo, na imagem tradicionalmente associada à esquerda. Acreditam que política se faz principalmente por meio de opções quotidianas. Valorizam a diversidade. Articulam-se (com eficácia crescente) de modo horizontal.

Os coletivos defendem, entre outras causas, o passe livre no transporte coletivo (Movimento do Passe Livre-MPL), a legalização de drogas hoje ilícitas (Desentorpecendo a Razão-DAR), o apoio aos movimentos sociais (Aymberê), a produção cultural independente, difundida por circuitos não-mercantis (Fora do Eixo). Juntos, conceberam e realizaram com êxito, em 28 de junho, a Marcha da Liberdade [ver relato em Outras Palavras], em São Paulo. Agora, querem dar-lhe caráter mais amplo. Em 18 de junho, 33 cidades preparam atividades de rua que, juntas, comporão a Marcha Nacional da Liberdade – construída tanto em reuniões presenciais quanto numa página própria no Facebook.

Por trás da novidade, há dois processos simultâneos. Existentes há vários anos, os coletivos acima – e diversos outros, que compartilham pontos de vista e formas de organização semelhantes – têm alcançado, nos últimos meses, poder de convocação surpreendente. Em janeiro, uma indignação que se difundiu via net reuniu centenas de adolescentes, numa série de manifestações contrárias ao fechamendo do Cine Belas Artes. No mês seguinte, começaram os protestos contra o aumento das passagens de ônibus, que atraíram participação inédita e tiveram fôlego para se estender por muitas semanas. A partir de maio, uma sequência impressionante: “churrasco de gente diferenciada” (14/5), para exigir a construção de uma estação de metrô rejeitada por uma minoria influente no bairro de Higienópolis; marcha pela legalização da maconha (21/5); marcha da liberdade (28/5) e “marcha das vadias”, pela liberdade sexual e contra o machismo.

Todas estas manifestações, que reuniram entre várias centenas e alguns milhares de pessoas, foram organizadas de forma não-convencional. O convite partiu de indivíduos (como no “churrasco”) ou coletivos. Partidos políticos, embora bem recebidos em todas as ocasiões, tiveram papel discreto. A horizontalidade estendeu-se à ausência de carros de som e de oradores oficiais. Em sua nova “arquitetura”, os atos oferecem a cada participante ou grupo amplas condições de manifestar suas causas (por meio de cartazes, faixas, refrões). Mas nenhum está autorizado a se sobrepor aos demais.

O segundo motivo que impulsiona a Marcha Nacional da Liberdade é a necessidade de inibir a repressão. As novas manifestações estão sendo confrontadas por uma selvageria policial que não se via desde a ditadura militar. São Paulo destaca-se de novo – aqui, por reacionarismo. Na maioria dos protestos contra o aumento das tarifas de ônibus, e na marcha pela legalização da maconha, a polícia usou, contra manifestantes pacíficos, armas (balas de borracha, gás pimenta, bombas de “efeito moral”) e métodos (espancamentos brutais) típicos de quem procura desmobilizar pelo terror. As sensações de cerceamento à liberdade e retrocesso institucional foram agravadas por um comportamento do Ministério Público estadual incompatível com a democracia. Promotores que deveriam encarregar-se do combate ao crime organizado acostumaram-se a requerer da Justiça, por meio deestratégias esdrúxulas, liminares que foram usadas como pretexto para a violência.

Denunciar e desarmar a volta da repressão parece ser estratégico para os novos movimentos. É por isso que o debate desta quinta-feira – o primeiro, em preparação à Marcha Nacional da Liberdade, procura abordar a brutalidade da polícia. Ao fazê-lo, introduz uma novidade: os organizadores querem ir além da denúncia, conforme explica Gabriela Moncau, do Coletivo Dar. “Estamos interessados em assegurar a liberdade de expressão. Queremos lutar por um dispositivo legal que proíba o uso, pela polícia, das ‘armas menos letais’, contra manifestações pacíficas”. Ela lembra que, além dos dispositivos já empregados contra as marchas recentes, a PM já adquiriu (em São Paulo e outros Estados) os chamados tasers –armas de eletrochoque que paralisam instantaneamente, afetam o sistema nervoso central e podem, comprovadamente, levar à morte.

Embora ainda não haja uma agenda futura consolidada, os debates devem continuar, após o pontapé inicial de amanhã. André Takahashi, do Aymberê, sugere que os coletivos examinem, nos próximos dias, o Projeto de Lei (PL-)222, que pune a discriminação de homossexuais. Propõe ainda uma reflexão mais ampla sobre as rebeliões da juventude – “em especial o Democracia Real Ya! da Espanha e o movimento global que vimos surgir com as revoluções nos paises árabes”.

Se este diálogo inter-coletivos se estabelecer, é provável que dois temas migrem para o centro das preocupações. O primeiro é a amplitude social dos novos movimentos. A onda de manifestações vivida em São Paulo está, até o momento, restrita quase exclusivamente à classe média. Mas isso não revela tendência ao elitismo. Embora o cenário brasileiro seja muito distinto aos do Egito ou Espanha (o que é assunto para outro texto), a disposição para multiplicar relações, entre a sociedade parece manifestar-se também nos grupos brasileiros. Isso está explícito na própria proposta do Aymberê — que, aliás, busca ativamente abrir-se além da juventude. Também aparece, com intensidade crescente, no site do Coletivo Dar – onde se destaca, nos últimos dias, um texto em solidariedade à greve reprimida dos bombeiros do Rio de Janeiro.

Um segundo assunto palpitante é a relação entre novas lutas e projetos contra-hegemônicos de sociedade. Para gente como Gabriela Moncau, é uma discussão necessária. “Um dos desafios da esquerda é dialogar com quem não compõe seus guetos. Vejo-me como alguém anticapitalista. Mas penso que os novos projetos de emancipação podem ser tecidos sem unificar artificialmente pautas. Sou a favor de estabelecer diálogos, e buscar confluências naturais, baseadas em novos valores, lógicas e formas de estar no mundo”, diz ela.

Raízes da Bossa Nova


Nesta sexta-feira, 10 de junho, o Brasil celebra os 80 anos de João Gilberto, criador, ao lado de Tom Jobim (1927-1994), da bossa nova, a mais importante e influente manifestação da música popular brasileira no século 20. Em pleno aniversário do cantor e mais de duas décadas depois da publicação do livro Chega de saudade - A história e as histórias da bossa nova, de Ruy Castro, (Companhia das Letras, 1990), Minas Gerais reivindica para si a parte que lhe toca na trama, desde que o cantor, compositor e violonista, nascido em Juazeiro, na Bahia, resolveu passar temporada na casa da irmã, Maria da Conceição Oliveira, a Dadainha, na Diamantina de meados dos anos 1950. “Depois que li o livro do Ruy, em que ele fala que João não saía de casa e não se relacionava com ninguém na cidade, me senti incomodado”, protesta o professor, músico e escritor Wander Conceição, empenhado na publicação de um livro sobre o tema. “Acho que a cidade tem de resgatar essa história e acabei assumindo a empreitada”, diz.

Além do provável nascimento da célebre batida do violão de João Gilberto na cidade mineira, destacada pelo próprio Ruy Castro em seu livro, Wander diz que pretende provar que o estado, então governado pelo diamantinense e futuro “presidente bossa nova” Juscelino Kubitschek (1902-1976), contribuiu para o surgimento e enriquecimento do movimento responsável pela divulgação da música popular brasileira mundo afora. “Para isso, é necessário contextualizar Diamantina desde a época do compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1746-1805) - que com a crise da mineração se mudou para o Rio de Janeiro -, até 1956, quando João passou pela cidade”, justifica o professor, cuja pesquisa está a pleno vapor. Ele já entrevistou cerca de 40 pessoas sobre a passagem de João pela cidade, reafirmando a tese de que, desde aquela época, o baiano já sabia onde queria chegar.

O compositor Pacífico Mascarenhas também não oculta o orgulho de ter encontrado João em plena Diamantina dos anos 50. “Fui eu quem falou para o Ruy Castro sobre a passagem dele pela cidade. Lá ninguém sabia que se tratava de João Gilberto, que ainda nem era conhecido no Brasil”, observa o compositor.

De Juazeiro para o mundo
“Vocês ainda vão me ouvir no rádio e na TV”, teria dito várias vezes João Gilberto aos que com ele conviviam em Diamantina, em 1956. Do famoso footing nas capistranas (pedra do meio no calçamento pé de moleque, característico das regiões coloniais) à casa onde viveu com a irmã e o cunhado Péricles Rocha de Sá, engenheiro-chefe da Cia. Mineira de Obras, o historiador Wander Conceição quer esclarecer detalhes da passagem do jovem músico pela cidade. Para isso vem conversando com muitos moradores antigos da cidade, recolhendo histórias reveladoras.

Na entrevista concedida a ele por Vitalino Alves Baracho, que já faleceu, o contador, que morava no pavimento superior da casa da irmã de João, diz que muitas vezes, diante do acúmulo de serviço, tinha de trabalhar à noite mas não conseguia por causa do “treinamento” do músico baiano. "João Gilberto ficava tocando no quartinho, ao lado do banheiro. E era um pim, pim, pim, pim, pim, numa cordinha só. De madrugada, moço! Enfiava hora e hora! Eu na cama, sentado, e ele lá embaixo não parava!”, protestou Vitalino, que dizia à mulher Eni que João era doido. “Não é possível! Isso são horas? Se ainda pelo menos fosse um violão bem tocado!”, reclamava o contador. Já Leon Horowits, filho de família carioca que também foi morar na cidade na mesma época, detinha a maior discografia de jazz de Diamantina, que acabaria atraindo a atenção do baiano.

“Um sujeito extremamente inteligente e educado. Um filósofo, um verdadeiro gentleman”. Assim se refere a João Gilberto a maioria dos entrevistados do professor. De acordo com Wander, desde aquela época João também já dizia para os mais próximos que ele queria levar para a música a dissonância da poesia de Carlos Drummond de Andrade. A história de João Gilberto em Minas Gerais, aliás, vai além de Diamantina. Na cidade colonial, o baiano também conheceu o compositor Pacífico Mascarenhas. A amizade dos dois acabaria se estendendo a Belo Horizonte, onde, já com o primeiro disco gravado, João conheceria ainda Roberto Guimarães, autor de Amor certinho, que ele gravou no disco O amor, o sorriso e a flor, de 1960. “Acho que o João gostou de mim por causa de meu jeito mais tímido”, afirma Guimarães, cujo último contato com o amigo ocorreu por telefone. “Eu na recepção do hotel em que ele estava hospedado na cidade e ele no quarto”, diverte-se o compositor, admitindo que aos gênios tudo se perdoa.

Pacífico Macarenhas atualmente veicula no YouTube o registro de composição de sua autoria,Pouca duração, na voz de João. “Trata-se de uma gravação caseira, de 1959”, recorda. Ele explica que a música só não foi oficialmente lançada em disco pelo cantor baiano porque a mulher dele na época, Astrud Gilberto, manifestou desejo de gravá-la, o que acabou não ocorrendo. Fundador do quarteto Sambacana, que chegou a lançar disco pela EMI-Odeon com suas composições, Pacífico acabaria introduzido nas célebres reuniões da bossa nova, no Rio de Janeiro, na casa do pianista Bené Nunes, ao lado de músicos como Roberto Menescal, Sérgio Ricardo e Luiz Bonfá, entre outros.

O cantor
Para o músico, linguista e professor Luiz Tatit, é necessário situar o momento em que João Gilberto surge na cena musical – década de 1950, quando o canto era extremamente retórico, romântico e passional – para entender a escola do gênero criada pelo cantor. “Como, naquele momento, os estudantes – então os grandes consumidores de disco – se afastavam do meio, como se a música fosse uma espécie de novela mexicana, João procurava a canção objetiva. Ou seja, ele procurava extrair os excessos para ficar apenas com os núcleos: a dissonância do violão, a melodia oscilando em poucas ou até mesmo em torno das mesmas notas”, explica Tatit.

“Como nesse processo os acordes (harmonias) mudam, dá impressão de que é a melodia que está mudando”, acrescenta o professor, para justificar a voz de João como se fosse a própria fala. “A bossa nova promove a decantação. O objetivo dela é o enxugamento”, reforça o ideal do movimento criado pelo artista baiano, lembrando que João Gilberto acabaria fazendo o mesmo com a letra de música, também, ao promover quase que um retorno ao registro infantil de letra. “Exemplo disso são O pato, Lobo bobo e até o disco O amor, o sorriso e a flor, que quase vira um slogan da bossa”.

O traço de delicadeza que acabou responsável pela passagem para uma nova estética musical, segundo Luiz Tatit, não ficou reduzido a João Gilberto. “Tom Jobim também retirava os excessos de notas e acordes, criando acordes quase depenados”, exemplifica. Ele lembra que tal atitude chega à emissão muito peculiar, ao mesmo tempo muita ritmada, ligada à célebre batida do violão de João Gilberto. “A história da valorização rítmica era para a renovação do samba, então muito passional graças ao samba-canção”, justifica Tatit.

Para o papa da bossa nova o samba autêntico tem de ter este aspecto, como no início, na época de Noel Rosa, fizeram Orlando Silva e outros que o influenciaram. “Em vez do surdo, o tamborim que João faz com o próprio violão”, explica Luiz Tatit, justificando o fato de, desde então, cantores e cantoras passarem a imitar João Gilberto. “Nara Leão, por exemplo, só se propôs a ser cantora por causa de João, depois dele. Ela não tinha voz para tal”, recorda. Tatit destaca que foi também a senha para que os compositores começassem a cantar a própria obra. “Chico Buarque jamais cantaria se não houvesse João Gilberto”, afirma. “Depois de João não apareceram mais cantores. Daí as mais de três décadas em que só surgiram cantoras. A exceção é Ney Matogrosso. Na verdade, os compositores é que passaram a cantar”, salienta Tatit.

Quem melhor incorporou o estilo de João? “A questão é a triagem da bossa nova que, de tempos em tempos, quase vira uma questão estética”, vai adiante o professor. Ele cita o exemplo do projeto Acústico MTV, que resultou em discos de voz e violão de ídolos pop como Rita Lee (que gravou um inclusive intitulado Bossa’n’roll) e Lulu Santos, além de Jorge Benjor e Gilberto Gil, entre outros. “É um gesto bossa nova, que de tempos em tempos temos de ter. Isso foi incorporado na nossa cultura e volta e meia alguém faz assim. Cazuza é um exemplo em Faz parte do meu show”.

“João Gilberto e a bossa deixaram isso como reflexão. Toda vez que há processo de decantação, o gesto bossa nova aparece. Hoje, por exemplo, Fernanda Takai é fruto direto da maneira de cantar do João e da Nara Leão, a quem ela dedicou o disco Onde brilhem os olhos seus”, explica Tatit. Para o professor, João nunca deixou de aprofundar sua proposta bossa nova inicial. “Ele foi radicalizando a experiência até quase desaparecer a emissão. Nesse sentido, o João dos anos 1990 e mesmo do novo século é mais interessante que o da bossa nova. Aliás, ele foi cantando cada vez melhor. A idade, neste caso, me parece um detalhe irrelevante, bastaria ele mudar o tom”, garante ao admitir que o cantor baiano está diminuindo o volume de voz, deixando até de emiti-la para chegar ao silêncio.

“Ele nunca abandonou o projeto até hoje. Isto é excepcional”, ressalta Tatit, lembrando que quando os shows se tornaram verdadeiros espetáculos de pirotecnia, João vai para o palco, senta com o violão e canta com o voz desaparecendo, atraindo o mesmo número de pessoas que os grandes espetáculos. “É um fenômeno brasileiro. Não há em outra nação algo parecido, nem que seja com o piano”, afirma. Já as influências internacionais no canto de João Gilberto (Chet Backer, por exemplo) foram importantes talvez num primeiro momento (sobretudo o cool jazz), mas a singularidade obtida nos anos seguintes, garante Tatit, pouco têm a ver com essas influências. “Na bossa nova não há improvisação (algo essencial no jazz), por exemplo. Não há nada no mundo parecido com João Gilberto”.

O violonista
João Gilberto é uma totalidade. Pode-se até avaliá-lo por partes (canto, violão e repertório), mas nenhuma delas se desvencilha do todo. A conclusão é do violonista clássico Turíbio Santos, atual presidente da Academia Brasileira de Música (ABM). “A musicalidade de João é tão extraordinária, que não seria ele se fôssemos avaliá-lo apenas pela batida do violão”, justifica. “João tem a harmonia e a polifonia, encontrada só em grandes violonistas acompanhadores. A escolha do repertório dele, por exemplo, é de uma inteligência incrível. Ele dá para a gente o que ele recriou com o compositor original. A música sai da voz dele já como do autor e dele”, avalia Turíbio.

Para o violonista, a dicção de João Gilberto revela que ele estuda profundamente a música. “Não há palavras e nem notas ao léu. A capacidade de concentração dele é tamanha que cada palavra é dita com uma atenção incrível. Não consigo ouvir João Gilberto sem prestar atenção. Ele nunca pode ser música de fundo”, diz o violonista clássico que certa vez fez um exercício musical a partir do cantor. “Botei o disco dele para tocar e saí tirando os acordes, minuciosamente, para entender o fenômeno. E não consegui”, revela Turíbio Santos, salientando o aspecto imprevisível da obra de João. “Teria de registar tudo em computador”, pondera, admitindo que os imprevistos é que dão a graça à música joão-gilbertiana.

Já a escola de violão de João Gilberto – e olha que o instrumento é importante na música brasileira desde sempre – é única, na opinião do também violonista. “Ele recriou o violão dentro da música brasileira. Alguns antes dele faziam acompanhamentos preciosos, lindos. Como Roberto Nascimento, que era muito meticuloso”, recorda. “Ele pega isso e acrescenta o imprevisto”, reconhece. Para Turíbio, quando ele estuda muito a interpretação de um clássico, a música acaba ficando gelada. Daí a importância do imprevisto. Eu não crio tensão ou surpresas. Essa é a beleza de tocar, para você e para o público”, revela o violonista.

Certa vez, João ligou para Turíbio para fazer uma de suas já famosas brincadeiras. “Mas acho que não deu certo comigo”, diverte-se. Segundo narra, ao telefone, com a voz característica, João Gilberto solicitava que ele afinasse o seu violão. “João, eu sou como você. Entendo de tocar, não de afinar violão”, respondeu Turíbio Santos, esperando que João desligasse o telefone na cara dele. Para surpresa do violonista, os dois ficaram uma hora conversando. A exemplo de outros artistas, Turíbio coleciona casos pitorescos envolvendo João Gilberto, ao telefone ou ao vivo.

A escola do violão joão-gilbertiano tem continuidade, na opinião dele, nos também baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, fãs que compreenderam a capacidade da tríplice aliança violão, voz e público. “A exemplo de João, ambos mobilizam público só com violão nas mãos”. “Tom Jobim sempre foi a grande referência do Brasil lá fora como músico, mas o cantor sempre foi João Gilberto. Ele é um todo”, conclui o violonista, advertindo que radical como o músico brasileiro ele conheceu no meio apenas o pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli, que fez o público do Teatro Municipal do Rio de Janeiro esperar por mais de uma hora e meia, até que os funcionários da casa colocassem o instrumento na posição que havia solicitado em contrato.

O compositor
Como compositor, João Gilberto é tão original quanto cantor e violonista. A constatação é do também violonista Juarez Moreira, que gravou ao lado da cantora Ithamara Koorax o único songbook do pai da bossa nova disponível no mercado fonográfico mundial. Trata-se de Ithamara Koorax & Juarez Moreira – Bim Bom – The complete songbook João Gilberto, lançado inicialmente nos Estados Unidos, Europa, Japão, pelo selo Motema Music, e, posteriormente, no Brasil. “A música de João tem todo um conteúdo brasileiro e nordestino. Muitos antes de virar moda, ela já usava os ritmos brasileiros genuínos, de maneira espetacular e totalmente original”, atesta o violonista, salientando que a grande referência do compositor João Gilberto é o Brasil.

Ao trazer à tona a criação de João Gilberto que acabou relegada a segundo plano, injustamente, Ithamara Koorax fugiu da imitação pura e simples do jeito singular de João cantar, como tantos já fizeram. Para ela, ao ouvir uma canção como Bim bom, gravada pelo autor em 1958, como lado B do 78 rotações que tinha Chega de saudade no lado principal, dá para perceber que a estética da bossa nova já estava inteira ali. “Chega de saudade era avançada para a época, chocou todo mundo. Mas o minimalismo de Bim bom ainda era muito mais avançado. Muita gente preferiu fingir que não tinha ouvido, porque realmente não conseguiu entender”, repara.

Segundo ela, até hoje tem gente que não compreendeu a obra do compositor. “Se a cabeça do João não funcionasse na base do Bim bom, não teria existido a concepção que ele aplicou às músicas de Tom Jobim. Ou seja, não teria existido a bossa nova. Pelo menos não do jeito que a concepção estética de João Gilberto a moldou”, justiça Ithamara Koorax. “O grande desafio para a gente foi fazer no disco o mesmo que ele faz na essência: fazer o difícil parecer simples, fácil. Fazer o que é complexo soar descomplicado, natural. Não bastasse isso, ainda é preciso ser sutil, cantar suavemente, frasear de forma criativa, lidar com alterações rítmicas e sincopado, tudo isso ao mesmo tempo numa fração de segundos. Nem dá tempo de raciocinar. Ou você sabe fazer ou não sabe”, ensina a cantora.

Do Estado de Minas